No dia 24 de junho de 2009, completei 93 anos, ou será que
foi 92 anos?
Não sei... mas que importa, só sei que são muitos anos,
muitas lembranças.
Me chamo Abigail, viúva, mãe adotiva de vários filhos mais um
deles registrei como legítimo.
Como sequela de um AVC, estou inválida das pernas, os
movimentos dos braços tenho-os com dificuldades, oriundos de um reumatismo crônico
Acredito que nunca mais andarei, pois sofro de hérnia de disco há muitos anos.
Para o meu médico, doutor Maurício, era ainda um milagre eu
andar apoiada em duas bengalas. Quanto ao andajá, aboli cedo, pois abominei ter
que me arrastar carregando aquele trambolho na minha frente. Com minhas duas bengalas
arrastava minhas caixas de crochê, fazia delas um anzol para “pescar” alguma
coisa que estivesse ao alcance delas.
Ia da cozinha para sala e vice versa, para o banheiro, até o
portão (o que era um PERIGO!), e outras saidinhas até a porta do quintal.
Hoje estou aqui em cima dessa cama inerte, sendo cuidada por
terceiros, ou seja, meus limites se tornaram maiores, assim como diminui a
minha paciência em ter que esperar pelo banho, pelo café, etc.
Olho para minhas pernas, as lembranças são nebulosas de um
passado distante, que corri quando criança, que dancei na juventude, mesmo
sendo escondido, mas dancei. Andei léguas a pé por falta de transporte, por
necessidade andei quilômetros e, andei muito por prazer de andar.
Tento não chorar, pois já não sei porque choro, se por estar
viva, ou por estar mais limitada.
Minha lucidez se esvai como um rio que corre para o mar e
não retorna a nascente. São nuvens escuras a ponto de cair uma chuva forte ou
espessas que trazem uma neblina fina do passado.
Não tenho sonhos ou projetos, pois os dias são iguais as
noites assim como as manhãs e as tardes. Só são diferentes apenas com a chegada
de algum visitante, ou o toque do telefone, que soa bem perto do meu ouvido.
-É Fulano... ou Sicrano... ou será Beltrano?
Minhas pernas inertes me levam ao passado, um passado não
muito fácil, pois cedo fiquei órfão de pai. As oportunidades de brincar,
sorrir, diminuíram pois tive que trabalhar, juntamente com meus irmãos, para o
sustento da casa e nos afazeres domésticos.
Aprendi a costurar e durante horas a fio pedalava com todo
vigor de minha juventude. Aos domingos ia para missa ou nos dias santos, onde o
padre rezava em latim e o coroinha respondia.
Minhas pernas queriam me levar para outros horizontes, meus
lábios queriam se abrir num sorriso, minha garganta queria atravessar o ar com
uma sonora gargalhada. Com nossos amigos, vizinhos ou quem sabe um namorado?
Juntei muitos Retalhos e costurei muitas Emendas. Até que
enfim:
Casei-me.
De uma forma aventuresca para a época em que vivíamos, pois
dormi com meu namorado antes de me casar, isso há mais sessenta anos atrás.
Em contrapartida em vez de benção, me lançaram maldição,
todos os tipos de imprecações, pois infligira todos os conceitos morais e religiosos
daquela época.
Desse ato impensado sofri desprezo, rejeição, fui traída, e
pior ainda, fui estéril, do meu ventre nunca foi germinado uma vida, sonho de
toda mulher.
Não lembro quantos
anos fiquei casada, também não me lembro há quanto tempo estou viúva. Vejo
diante dos meus olhos névoas entrecortadas de lágrimas engolidas a seco.
Por não ter como extra vazar, tudo isso se transformou
dentro de mim num caldeirão de amargura misturado com um mau humor e uma eterna
infelicidade. Por não sorrir e não fazer um afago, a dar ou receber um gesto de
carinho.
Meu corpo nunca foi enlaçado por um abraço, meus ouvidos
nunca ouviram uma palavra terna para abrandar a fogueira que a cada dia ardia
dentro de mim, tornando-me uma pessoa insociável, ríspida, amarga.
Fiquei viúva com um filho pequeno nos braços, sem
rendimentos, sem herança. Como uma máquina planejada para somente trabalhar,
tive que enfrentar um ritmo que minhas pernas já cansadas não podiam descansar.
TRABALHO+TRABALHO=TRABALHO.
Era uma conta matemática, ou uma máquina, se fosse hoje
seria um computador. Minhas pernas iam e vinham, de domingo a domingo, hoje é o
contrário de domingo a domingo elas estão inertes.
Minhas lembranças me levam para o terreno que eu e o meu marido cuidávamos, o capim,
os cajueiros, as mangueiras, as galinhas, a água retirada da cacimba funda
Vejo uma fumaça diante de mim é uma chaminé de um fogão a
lenha, onde brasas vivas aquecem uma panela de barro, ou será o fogão que está
escapando gás? Será que está na hora da merenda na Escola?
Enxugo os olhos com um pano que às vezes faço de lenço, ou
de guardanapo. Minhas pernas estão inertes, mais num curto espaço de tempo elas
caminharam milhas e trilhas do meu passado distante, com Retalhos e Emendas, há
mais de noventa anos!
28/07/09
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